domingo, 28 de outubro de 2012

O barco batizado Esperança - PARTE IV - A Ilusão

Caminhavam pelas torrentes de ruas daquele morro nos arredores de Atenas, tal como torrentes de água que se formam pelas encostas dos montes serpentinamente. Kostas chegara a casa a meio da manhã. Elena, esperava-o, ou esperava, preocupadamente em casa, enroscada nas almofadas do sofá. Tentara ligar-lhe para o telemóvel mas apenas percebera que Kostas deixara o telemóvel em cima do móvel no hall. Esquecera-se de lhe dizer que de manhã passaria pelos estaleiros navais para arrumar e trazer os seus bens pessoais. Depois de almoço, Elena, sugeriu passearem um pouco pelos bairros.. Sentia Kostas nervoso e queria acalmá-lo. Calcorrearam ruas feitas das tais torrentes. À medida de que se aproximavam de um infantário ouviram crescer o ruído simultâneo de muitas crianças no pátio de recreio, ao mesmo tempo que, decresciam os ruídos do bairro. Perto, já perto, aquele ruído não parecia mais do que uma imensa confusão de barulhos irritantes, desconexos, molestos. Hoje não. De facto, a gritaria de um recreio de infantário, perto, bem perto, consome o mais banal dos pensamentos. Hoje não. Continuaram, pelas tais torrentes de ruas. Primeiro a descer, depois a subir. Subiram, subiram, subiram, entre passeios, carros mal estacionados, condutores arrojados. Lá em cima um jardinzinho com um miradouro, abraçando os subúrbios da cidade. Enquanto subiam decresciam os barulhos do bairro que imitavam os barulhos de uma cidade. Decresciam. Leve, levemente, caminhavam para a tranquilidade do jardim e, assim, contagiados, sentiram pouco a pouco desvanecer-se alguma da tensão acumulada. Quando chegaram ao jardim já nada ouviam, a não ser a sua voz interior e os seus pensamentos que, ainda, os assombravam. Ao entrarem no jardim sentiram de imediato a voz das árvores e do vento, e do vento entre as árvores. Continuaram a caminhar de mão dada, até a um ponto com vista, à medida que outro som crescia leve, levemente, misturando-se à harmonia relaxante das árvores e do vento. E esse som crescia. Por momentos não se aperceberam de onde vinha nem o que era. Mas não incomodava, pelo contrário. Aproximaram-se cada vez mais, e mais, do ponto com vista, e identificaram um pequeno vale entre o morro do jardim e um outro morro do lado de lá. O som, o som que crescia vinha de lá, e sobre eles exercia um efeito relaxante, pacificador, e onde todos os seus pensamentos e assombros, de repente, se diluíram, desaparecendo. Até que. Até que, decorrido algum tempo, perceberam que aquele som não era mais do que o som das crianças no pátio do recreio, do infantário pelo qual tinham passado. De facto, ao longe, do outro lado do vale, o som acumulado das crianças, que de perto era irritante para Kostas e Elena, transformara-se numa leve brisa de vento, num leve restolhar sobre as folhas das árvores. E, momentaneamente, sentiram-se bem, como nada os infortunasse, como nada os preocupasse. A serenidade. Sentaram-se sob a melodia daquela tarde de jardim. Elena pensava que nunca, nunca, nunca, o barulho das crianças lhe tivera tal impacto, tal efeito. Percebera então, que, há medida que se tinham aproximado daquela vista, o som afastado das crianças no recreio era como a som afastado da sua infância. Na verdade, é difícil para nós, perto de nós, voltarmos a sentir-mo-nos crianças. Mas ao longe, ao longe, aquele som afastado parecia tão real como o afastamento de Elena para com a sua infância. E assim, era como se regressasse à infância. Era esse o feitiço do som.
«Kostas?»
«Sim?»
«Já reparaste que o barulho longínquo da crianças tem um efeito sobre nós?»
«Como assim?»
«Este ressoar suave das crianças no pátio da escola, ecoa em mim como as lembranças da minha infância. Sinto-me bem, descontraída, sinto-me como uma criança. E já reparaste que esse som, leva-nos ao passado, ao futuro e ao presente?»
«Não estou a perceber.....»
«Leva-nos ao passado porque nos faz lembrar quando éramos crianças, e desperta em nós, lembranças escondidas, sentimentos há muito perdidos. Faz-nos estar no presente porque, como agora, distraí-nos, esvaíra-nos dos problemas dos nossos dias, refresca-nos a alma, faz-nos lembrar de nós próprios. E leva-nos ao futuro porque faz-nos acreditar na esperança, que há sempre esperança!»
Silêncio.
E depois do silêncio, Elena:
«E sabes porque nos faz lembrar que há sempre esperança?»
«Porque as crianças são a esperança de um futuro melhor?»
«Não! As crianças não podem ser a esperança de um futuro melhor. Isso é um engano nosso. Porque um dia, as crianças serão como nós, serão corrompidas como nós fomos, como todos somos. Isso de que a esperança está nas crianças é uma ilusão! A ilusão é que vive nas crianças, não a esperança. Quando eras criança tinhas esperança em alguma coisa ou tinhas ilusões?»
«Ilusões.»
«Sim! Ilusão. As crianças não sabem o que é a esperança porque só depois de saberem que tudo o que imaginam é ilusão, é que conhecem a esperança. E esperança é uma transformação da ilusão. Portanto, quando olhamos para as crianças não devemos ter esperança que o futuro será melhor, só por elas serem crianças. Mas devemos perceber que as crianças estão aqui para nos lembrar que houve um dia em que tivemos ilusões, mas que agora só podemos ter esperança. A esperança está em nós, não nas crianças!»
«E onde é que tu queres chegar com isso? Não te estou a entender. Nem a ilusão, nem a esperança me dão, nem resolvem, nada.»
«O que quero dizer é que, as crianças de hoje transformarão as suas ilusões em esperança, quando crescerem, assim como nós, um dia, transformámos as nossas. O reino da criança é a imaginação e a ilusão. O reino dos adultos é a esperança. As ilusões das crianças de hoje são diferentes das nossas ilusões, porque, mesmo as crianças, sabem construir ilusões realísticas. Elas baseiam o seu futuro com base naquilo que lhes parece alcançável, e com base no mundo que conhecem. Com base no mundo onde crescem. E o mundo onde, hoje, elas crescem é diferente do mundo onde nós crescemos. As crianças ensinam-nos que, tal como elas ajustam as ilusões à realidade onde crescem, também nós deveremos ajustar as nossas esperanças, à nossa realidade. É isso!»

PARTE V - A Esperança

0 comentários:

Pesquisar neste blogue

Contador

O tempo

Esperar, como todos sabemos, demora tempo a passar. Quando me sentei naquele banco de jardim não tinha qualquer intenção de pensar o que aca...

Popular Posts

Blog Archive

Acerca de mim

Simplesmente, alguém que gosta de ler e escrever...