O barco batizado Esperança - PARTE IV - A Ilusão
Caminhavam
pelas torrentes de ruas daquele morro nos arredores de Atenas, tal
como torrentes de água que se formam pelas encostas dos montes
serpentinamente. Kostas chegara a casa a meio da manhã. Elena, esperava-o, ou esperava, preocupadamente em casa, enroscada nas almofadas do sofá. Tentara ligar-lhe para o telemóvel mas apenas percebera que
Kostas deixara o telemóvel em cima do móvel no hall. Esquecera-se de lhe dizer que de manhã passaria pelos
estaleiros navais para arrumar e trazer os seus bens pessoais. Depois
de almoço, Elena, sugeriu passearem um pouco pelos bairros.. Sentia Kostas nervoso e queria acalmá-lo. Calcorrearam ruas feitas das tais torrentes. À medida de que se aproximavam de um infantário
ouviram crescer o ruído simultâneo de muitas crianças no pátio de
recreio, ao mesmo tempo que, decresciam os ruídos do bairro. Perto, já
perto, aquele ruído não parecia mais do que uma imensa confusão de
barulhos irritantes, desconexos, molestos. Hoje não. De facto, a
gritaria de um recreio de infantário, perto, bem perto, consome o
mais banal dos pensamentos. Hoje não. Continuaram, pelas tais
torrentes de ruas. Primeiro a descer, depois a subir. Subiram,
subiram, subiram, entre passeios, carros mal estacionados, condutores
arrojados. Lá em cima um jardinzinho com um miradouro, abraçando os
subúrbios da cidade. Enquanto subiam decresciam os barulhos do
bairro que imitavam os barulhos de uma cidade. Decresciam. Leve,
levemente, caminhavam para a tranquilidade do jardim e, assim,
contagiados, sentiram pouco a pouco desvanecer-se alguma da tensão
acumulada. Quando chegaram ao jardim já nada ouviam, a não ser a
sua voz interior e os seus pensamentos que, ainda, os assombravam.
Ao entrarem no jardim sentiram de imediato a voz das árvores e do
vento, e do vento entre as árvores. Continuaram a caminhar de mão
dada, até a um ponto com vista, à medida que outro som crescia
leve, levemente, misturando-se à harmonia relaxante das árvores e
do vento. E esse som crescia. Por momentos não se aperceberam de
onde vinha nem o que era. Mas não incomodava, pelo contrário.
Aproximaram-se cada vez mais, e mais, do ponto com vista, e
identificaram um pequeno vale entre o morro do jardim e um outro
morro do lado de lá. O som, o som que crescia vinha de lá, e sobre
eles exercia um efeito relaxante, pacificador, e onde todos os seus
pensamentos e assombros, de repente, se diluíram, desaparecendo. Até
que. Até que, decorrido algum tempo, perceberam que aquele som não
era mais do que o som das crianças no pátio do recreio, do
infantário pelo qual tinham passado. De facto, ao longe, do outro
lado do vale, o som acumulado das crianças, que de perto era
irritante para Kostas e Elena, transformara-se numa leve brisa de vento, num leve restolhar sobre as folhas das árvores. E,
momentaneamente, sentiram-se bem, como nada os infortunasse, como
nada os preocupasse. A serenidade. Sentaram-se sob a melodia
daquela tarde de jardim. Elena pensava que nunca, nunca, nunca, o
barulho das crianças lhe tivera tal impacto, tal efeito. Percebera
então, que, há medida que se tinham aproximado daquela vista, o som
afastado das crianças no recreio era como a som afastado da sua
infância. Na verdade, é difícil para nós, perto de nós,
voltarmos a sentir-mo-nos crianças. Mas ao longe, ao longe, aquele
som afastado parecia tão real como o afastamento de Elena para com a
sua infância. E assim, era como se regressasse à infância. Era
esse o feitiço do som.
«Kostas?»
«Sim?»
«Já
reparaste que o barulho longínquo da crianças tem um efeito sobre
nós?»
«Como
assim?»
«Este
ressoar suave das crianças no pátio da escola, ecoa em mim como as
lembranças da minha infância. Sinto-me bem, descontraída, sinto-me
como uma criança. E já reparaste que esse som, leva-nos ao passado,
ao futuro e ao presente?»
«Não
estou a perceber.....»
«Leva-nos ao passado porque nos faz lembrar quando éramos crianças,
e desperta em nós, lembranças escondidas, sentimentos há muito
perdidos. Faz-nos estar no presente porque, como agora, distraí-nos,
esvaíra-nos dos problemas dos nossos dias, refresca-nos a alma,
faz-nos lembrar de nós próprios. E leva-nos ao futuro porque
faz-nos acreditar na esperança, que há sempre esperança!»
Silêncio.
E depois do silêncio, Elena:
«E
sabes porque nos faz lembrar que há sempre esperança?»
«Porque
as crianças são a esperança de um futuro melhor?»
«Não!
As crianças não podem ser a esperança de um futuro melhor. Isso é
um engano nosso. Porque um dia, as crianças serão como nós, serão
corrompidas como nós fomos, como todos somos. Isso de que a
esperança está nas crianças é uma ilusão! A ilusão é que vive
nas crianças, não a esperança. Quando eras criança tinhas
esperança em alguma coisa ou tinhas ilusões?»
«Ilusões.»
«Sim!
Ilusão. As crianças não sabem o que é a esperança porque só
depois de saberem que tudo o que imaginam é ilusão, é que conhecem
a esperança. E esperança é uma transformação da ilusão.
Portanto, quando olhamos para as crianças não devemos ter esperança
que o futuro será melhor, só por elas serem crianças. Mas devemos
perceber que as crianças estão aqui para nos lembrar que houve um
dia em que tivemos ilusões, mas que agora só podemos ter esperança.
A esperança está em nós, não nas crianças!»
«E
onde é que tu queres chegar com isso? Não te estou a entender. Nem
a ilusão, nem a esperança me dão, nem resolvem, nada.»
«O que quero
dizer é que, as crianças de hoje transformarão as suas ilusões em
esperança, quando crescerem, assim como nós, um dia, transformámos
as nossas. O reino da criança é a imaginação e a ilusão. O reino dos adultos é a esperança. As ilusões das crianças de hoje são
diferentes das nossas ilusões, porque, mesmo as crianças, sabem
construir ilusões realísticas. Elas baseiam o seu futuro com base
naquilo que lhes parece alcançável, e com base no mundo que
conhecem. Com base no mundo onde crescem. E o mundo onde, hoje, elas crescem é diferente do mundo onde nós crescemos. As crianças
ensinam-nos que, tal como elas ajustam as ilusões à realidade onde
crescem, também nós deveremos ajustar as nossas esperanças, à
nossa realidade. É isso!»
PARTE V - A Esperança
PARTE V - A Esperança
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