domingo, 21 de agosto de 2011

A Feira


Estava prostrado à porta da casa-de-banho, onde pela última vez observou o pai a colocar o aftershave nas feições abatidas e resignadas que naquele dia se lhe impunham. O irmão tomava o pequeno-almoço, lá em baixo. O pai, encara-se uma última vez ao espelho e, ainda sem ter notado a presença do seu mais novo, Filipe, coloca ambas as mãos apoiadas no lavatório, enfrentando-se. Por fim, derradeiramente como quem expira aliviando todo o seu peso, em forma de resignação, expulsa frustradamente todas as suas dores, descendo a cabeça em termos de rendição. Foi, seguidamente ao acordar de todos os seus tormentos, que virando-se na direcção de saída, constata a ingénua figura do seu filho mais novo. Talvez, um pouco surpreendido, o seu arranque inicial dissipa-se, fazendo as suas pernas perder a razão do seu sustento, ajoelhando-se perante aquela frágil criatura e abraçando-o como nunca o tinha abraçado e como um dia desejará voltar a abraçar. Chorou, chorou e chorou. Lágrimas escorriam-lhe abundantemente entranhando-se na pele do seu filho, como que se tentassem para sempre pertencer a dois corpos distantes.

Sentado no sofá, André, o irmão mais velho aguarda-os. Desceram as escadas em ritmo lento, como quem não anseia tocar o destino. Os três agarraram os blusões que descansavam no cabide junto à porta para o exterior. Saíram. Caminharam. Entraram no carro estacionado na serventia que serve a moradia e, que hoje seria abandonada ao fluir temporal das transformações da vida.
André, já com 16 anos, acompanhou, em prenúncio do futuro próximo, o pai na frente do carro. Filipe, de 6 anos, atrás. O percurso até à feira fez-se em silêncio. Ninguém. Nenhum. Nem um deles quebrou. O silêncio, a reflexão venceram. A mãe aguardava-os sozinha no local e à hora combinados, junto à entrada da feira. Filipe, correu alegremente incapaz de resistir ao sorriso e à saudade maternais. O pai dirigiu-se à mãe. Um olhar desapegado reflectia-se em ambos. Ele pede-lhe uma última hora, ele e os seus dois filhos na feira. De cara virada e olhar remoto ela acenou positivamente.
Deambularam os três entre o desfile de algodão doce, churros, pipocas, farturas.  À direita uma roda gigante, um barco pirata, uma montanha russa. À esquerda carrosséis mais infantis: uns aviõezinhos, uma selva, uma mini-pista de carros. André colocou Filipe às suas cavalitas. É que também para ele a separação ao seu irmão mais novo e à sua mãe seria penosa. Pai e mãe em vontade com a vontade da vida seguirão caminhos distintos. Ele voltará, ainda hoje, com André para um qualquer país estrangeiro. Ela e Filipe ficarão. É que de Filipe ainda de 6 anos, a mãe não consegue separar-se, mas de André, com 16 anos, jovem vigilante da vida adulta, seguirá, para um outro país, com mais oportunidades, estudará numa boa universidade. Mas nesta escolha da vida Filipe e André serão afastados um do outro.

Seguiram para os carrosseis infantis onde o pai colocou Filipe num daqueles carrosseis em que animais de rosto feliz, giram e giram em volta de um eixo enquanto os seus corpos ondulam como as ondas do mar. André e o pai esperaram. Filipe desprende-se naquele movimento constante, de cima-baixo-cima-baixo….. sorrindo, rindo…….. voltando a sorrir, a rir, a sorrir. Como é fácil uma criança sorrir. O pai observa-o, e é nesse instante, que embalado ao som de uma qualquer música de feira, liberta-se do que o consome, e observa a felicidade, o sorriso, a luxúria de Filipe. Sabia que não tão cedo voltaria a apreciar a sua infantilidade, se por acaso esse dia ainda chegasse. Na sua cabeça fotografias sucessivas iam-se materializando, arquivando-se na forma de memórias, de saudade, de nostalgia. Foi nesse momento que André fixando as tímidas lágrimas do seu pai, apercebeu-se da veracidade e da significância daquele momento, consciencializando-se pela primeira vez da finitude da vida, abrindo lugar ao seu primeiro passado. O tempo encurtava. Perceberam que não poderiam deixar os seus últimos momentos marcarem-se pelo que perderiam, mas sim, que teriam esta última oportunidade para brincarem juntos, de rirem e sorrirem. E agora, só isso, e isso só interessava. Ao fundo, uma qualquer música de feira. Jogaram jogos, entraram em carrosseis, comeram farturas! E, no fim, ao fundo, outra qualquer música de feira.

Continuaram a passear. E todos, agora, com um grande sorriso. Porque sim, o que interessava era aquele momento, e aquele momento era um momento para sorrir.

Mas Filipe parou. É que na feira havia uma pequena organização para encontrar um lar para animais abandonados. Filipe não resistiu……. correu para eles. E como qualquer cliché, pediu um ao pai. Queria um cachorrinho, todo preto, de pêlo curto, e com patinhas e peito de malha branca. O pai, claro, não lhe o podia permitir. Não seria ele a assumir a responsabilidade pelo cachorro, teria de ser a mãe. Tentou, explicar isso a Filipe, mas claro que ele mesmo percebendo, não quis perceber. Mas não precisou de insistir. É que para aquele pai, não lhe restava nada mais, do que ambicionar, ainda mais, um sorriso maior, o maior dos sorrisos, na cara de Filipe. Sabia que a mãe, muito provavelmente não aprovaria, mas depois pensou: “Também ela quererá ver um sorriso na cara do Filipe. Também ela compreenderá, que o cachorro não é uma compensação, mas se é ele que é preciso para alegrar o nosso filho, de certeza que não o recusará. E pensará que sou sempre o mesmo irresponsável, por nem sequer lhe perguntar se aceita este cachorro? Sim, mas que pense de mim o que quiser, porque a mim o que me vale é a alegria do meu filho aqui, agora. Sim, sou egoísta dirá ela, que pense mal de mim o que quiser. Já quis saber dela, agora quero saber do meu filho”.
E assim, Filipe, levou o cachorrinho preto de patas e peito branquinhos.
Caminharam de volta, para a mãe. Ela, viu o cachorro. Suspirou, abanou a cabeça, mas interiormente comoveu-se. Percebeu o porquê. Acho-lhe piada. Mas não o admitiu. Aquele cachorro, só lhe daria, a ela, mais trabalho, mais chatices. Mas interiormente também ela sorriu. Ao pai, ela não nada disse.

É que há um dia, o primeiro dia da nossa vida que perdemos, algo ou alguém muito importantes. E esse dia não esquecemos, nunca. É que este dia, foi para Filipe, o dia, o primeiro que perdeu alguém: o pai, o irmão.

Mas na vida, também há um dia, o primeiro em que ganhamos algo ou alguém muitos importantes. E esse dia também jamais esqueceremos. É que este dia, foi para Filipe, o dia, o primeiro que ganhou alguém: um cachorrinho, que seria o seu próximo amigo.

Curiosa é, assim, a história de Filipe. É que o primeiro dia em que perdeu algo é também o primeiro dia em que ganhou. E no futuro, como verá Filipe este dia? Como conseguirá compreende-lo? É que se é fácil entender ou marcar um dia, em que ganhámos e outro em que perdemos, como aceitar que a vida nos reserve o mesmo dia para duas formas diferentes? Essa foi a sorte de Filipe.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Conhecer uma pessoa, uma guerra.............alguém e algo desconhecidos

Pouso o livro. Mantenho-o perto, arriscadamente perto de mais. Mas se já li este livro, por que é que me custa tanto, agora, depois de lido, voltar a encará-lo? É que, só depois de tomar consciência do seu conteúdo, posso desmistificar a sua capa. Identifico, assim, uma questão:

E se a infância for um lugar a que se não deseja retornar?




O propósito espaço em branco tem um significado. Simboliza o espaço temporal que a frase ecoa na minha cabeça, mantendo-me apaticamente estagnado. É que, se a minha infância é um lugar a que nunca me recuso regressar, torna-se dificilmente compreensível, para mim, o entendimento de uma infância oposta. É no entanto este sentimento que me percorre. 

Encaro desta forma, uma história que não vale a pena encenar. Uma história que não vale a pena descrever o que me rodeia, o que me envolve, onde estou. Nada. Porque não interessa onde estou. Porque nada pode alterar essa história. Essa história é a história da própria História.

Não há nada a esconder. Cada página folheada, cada palavra, apenas, e apenas me elucida: 38 milhões de falsos destinos. Falsos? Falsos……falsos são 38 milhões de óbitos. É por isso que hoje, não vale a pena envolver-vos. Porque hoje estou na envolvência e nos lugares daqueles incómodos seis anos. E, de certeza que querem que eu descreva este cenário? Eu não quero. Mas é exactamente a construção dos cenários, que me faz gostar de História. Hoje alcanço isso, talvez graças a este livro. A relação é recíproca: a História é a história dos Homens, e são os Homens que construem a História. Porque quando apreendo um pedaço de História, associo cada passo, revejo cada passo, nos passos dos Homens. E tal como conhecer uma pessoa me fascina, conhecer a História é conhecer as histórias de todos aqueles que a fizeram, e fazem, parte da História. É por isso que, quando leio um livro de História, revejo todas as histórias daqueles que a História conta.

Como pessoas, temos o nosso passado. E para conhecer uma pessoa, é preciso conhecer o seu passado. Mas não podemos deixar de assumir que, onde estamos, também tem o seu passado. E se o Homem e a História são um produto recíproco, então, não é para mim suficiente interessar-me somente pelo passado das pessoas. Sou obrigado a largar o egocentrismo da nossa individualidade e a conhecer o passado de todos nós.

Li ” A Europa em Guerra 1939-1945” de Norman Davies, mas não me bastou.

Li “As grandes batalhas da História: Midway, Al-Alamein, Monte Cassino, Estalinegrado, Kursk, Normandia”.

Aprendi que em Midway, exactamente as ilhas a meio caminho no Pacífico, entre a América e a Ásia, os EUA derrotaram a supremacia naval do Japão invertendo o rumo da guerra no Pacífico.

Aprendi que em Al-Alamein, e com a Operação Tocha, os Aliados ganharam supremacia no Norte de África, factor importantíssimo para controlo e abastecimento de petróleo.

Aprendi que em Monte Cassino, Polacos, Franceses e Americanos privaram a Alemanha do seu maior aliado, a Itália, abrindo caminho para a conquista de Roma.

Aprendi que as batalhas de Estalinegrado e de Kursk privaram a Alemanha de conquistar Moscovo, invertendo o rumo na Europa. Sim….na Europa, não só a Leste. É que se os Soviéticos não derrotassem a Alemanha, e não a submetessem a um terrível desgaste, esta não se teria enfraquecido a Oeste, debilitando os seus recursos a Ocidente, a favor da frente Leste, e desmoralizando as tropas. Só assim foi possível o desembarque na Normandia e o avanço dos Ocidentais até Berlim. É que se os Soviéticos não tivessem derrotado a Alemanha na frente Leste, os EUA e a Grã-Bretanha não se atreveriam a desembarcar na Normandia. Porquê? Em 1940 britânicos lançaram a operação Dínamo, com o objectivo de evacuarem os soldados britânicos, e franceses de Dunquerque na França. Evacuaram mas falharam, apesar de oficialmente ter sido um sucesso Mas quem sabe disto? Quem conta isto? Milhares de soldados morreram devido ao fogo aéreo alemão, mas isso………..isso foi ocultado pelos britânicos e curiosamente ainda não vi um filme sobre esta batalha. E depois? Depois….. depois da capitulação de França praticamente não houve guerra na Europa Ocidental, só na frente Leste. Batalhas…….. batalhas na frente ocidental, para além de pequenos conflitos, só bombardeamentos aéreos, a guerra do Atlântico e em 1944 o desembarque na Normandia. É que tal como conhecer uma pessoa, não posso acreditar no que me contam sobre ela. Só conhecendo-a, só explorando-a, posso na verdade saber quem é.

Aprendi os horrores da frente Leste. Aprendi que o que Americanos, Britânicos e Franceses contam da guerra, é apenas uma pequena parte do esforço de guerra, da carnificina, dos horrores. Porque esses horrores, a verdadeira guerra, foi a Leste, não foi a Ocidente. E deixo-vos uma pequena tabela com a dimensão das mortes nos diferentes cenários da guerra. E digam-me se ainda acham que o Dia D é a batalha vital? Que o dia D é o palco dos heróis de guerra? 

Batalha
Mortes
Operação Barbarossa (invasão da URSS pela Alemanha)
1 582 000
Batalha de Estalinegrado
973 000
Cerco de Leninegrado
900 000
Batalha de Kiev
657 000
Operação Bagration (avanço da URSS para a Europa Central depois de derrotar os alemães em Kursk)
450 000
Batalha de Kursk
325 000
Batalha de Berlim
250 000
Invasão da França pela Alemanha
185 000
Operação Overlord (desembarque dos aliados na Normandia)
132 000
Batalha de El Alamein (África)
4 650

Museu da Guerra - Varsóvia

Acredito, agora, que a Segunda Guerra Mundial não se ganhou numa batalha, num desembarque, numa região, por um país. Foi um conjunto de acontecimentos que definiram os outros. Sem essa sequência, o destino seria outro. Não foi o dia D, não foi a batalha de Kursk, não foi a batalha de Estalinegrado, não foram os soviéticos, não foram os americanos, não foram os britânicos. Ou melhor, foram, mas foram todos. É que, tal como uma pessoa, podemos justificar aquilo que nos tornámos, quem somos, invocando um e um só dia? Talvez, admito, até possamos invocar um acontecimento que tenha alterado e contribuído fortemente a nossa vida. Mas, maioritariamente, não é a nossa vida uma sequência de acontecimentos, que nos vai transformando, construindo? Uns mais importantes, outros menos, tudo bem. Uns mais decisivos, outros em nada. A História assim também o é. E não esqueçamos que tal como uma pessoa, as batalhas são apenas o resultado final, o resultado visível de algo muito mais profundo, muito mais abrangente, é somente aquilo que se vê, mas só vendo não se conhece.


Continuo em busca de mais….quero saber mais. Estou, por isso, a ler um novo livro: “Uma guerra desconhecida” de Paul-Marie Gorce. E é esta dedicação a este tema que a semana passada, tomou um colega a abordar-me: “João, tu gostas de História em geral ou gostas é da Segunda Guerra Mundial?” Retorqui que gosto de História, mas que a da Segunda Guerra me fascina particularmente. Talvez pela sua proximidade. Talvez pela sua magnitude. Talvez por ser a mais bem documentada, a gravada, a que ainda hoje se pode testemunhar. Mas talvez, por ser aquela que ainda nos marca. Que ainda está presente. Aquela que ainda hoje lembra Checos e Polacos, por exemplo, a detestarem Russos e Alemães. Sim…..…já conheci Checos e Polacos……….já vivi com eles……… já estive na Polónia e na República Checa, não falo ao acaso. A Segunda Guerra, aquela que até 1989 ditou a divisão da Europa em dois blocos. Aquela cuja nossa Europa foi construída pelos que nela cresceram, pelos que nela obtiveram as primeiras memórias deste mundo, memórias de guerra. Porque quem nela nasceu, quem nela cresceu, até hoje foram aqueles que governaram. 

É por isso que para nós Europeus, a visão de entrar em guerra, de violar um país é diferente da dos EUA. Sim, porque eles nada sofreram, além de uma esquecida guerra civil, além de uma singular ilha no Pacifico, até ela, por eles tomada. Que a maturidade e as lições da Segunda Guerra não sejam esquecidas pelos novos Europeus, por nós. Que aprendamos com a História de todos e não só o com a nossa própria. Como pessoas, temos o nosso passado. E para conhecer uma pessoa, é preciso conhecer o seu passado. Mas onde estamos também tem o seu passado. Homem e História são um produto recíproco. Não é para mim, suficiente, interessar-me somente pelo passado das pessoas.Sem espanto, comprei, assim, um novo livro: “Sete líderes em guerra”, de Marc Ferro. A influência destes sete homens na guerra? Porque quando apreendo um pedaço de História, associo cada passo, revejo cada passo, nos passos dos Homens. E tal como conhecer uma pessoa me fascina, conhecer a História é conhecer as histórias de todos aqueles que a fizeram, e fazem, parte da História. Sou obrigado a largar o egocentrismo da nossa individualidade e a conhecer o passado de todos nós.

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