Quase quase quase... Um Conto de Natal - PARTE I
PARTE I – A FOTOGRAFIA
Caminho por ruas
estreitas, de chão negro, pedra negra, encoberta, por vezes, pela neve. Das
ruas limparam a neve de Natal que, repousa encostada aos edifícios,
como uma enorme fita branca que decora, de um lado e do outro a rua. O
contraste da cor da pedra e da cor da neve torna estas ruas de uma beleza
singular, simples, como dois opostos que se complementam. Subo a rua, sem
avistar nenhum outro transeunte. Mas não sigo sozinho. Comigo, Ingrid, a minha
mulher. Vem um pouco mais atrás. Além de Ingrid, só o silêncio de uma rua
vazia, o silêncio frio, como o frio acolhedor dos dias entre o Natal e o ano
novo. O céu está azul. Subo e, de vez em quando, olho para as montras, que, de
um lado e do outro, estão a ser remodeladas para os saldos. Não tenho as luvas
calçadas, por isso, mantenho as mãos dentro dos bolsos do blusão. Por momentos
paro, olho para trás, e vejo Ingrid que sorri para mim. Estranho. Não, não é o
sorrir que é estranho. Estranho é aquela forma de sorriso. Não sei. Há coisas
que eu nunca percebi nela. Esboço também um sorriso. Conhecemo-nos nesta
cidadezinha quando éramos estudantes, e aqui ficámos. Cada um arranjou o seu
emprego, depois comprámos uma casa e tivemos filhos, que já estão crescidos e
que já têm, também eles, os seus filhos, ou seja, os nossos netos. Todos os
Natais são passados na nossa cidade, aqui, no norte. Entretanto, Ingrid
apanhou-me e dá-me uma pancadinha com o cotovelo para seguirmos. Pede-me para
levar os sacos do supermercado. Calço as luvas e agarro os sacos. Alguns
comerciantes, de vez em quando, assomam à porta do estabelecimento,
espreitando, mas depressa voltam para dentro, porque está muito frio cá fora.
Continuamos a andar, e depressa chegamos ao limite urbano. O carro está já ali,
e seguimos para casa. Quando entramos dentro de casa, ouvimos os netos. Brincam
com as prendas de Natal. Hans, o mais velho, de sete anos, vem a correr até
nós, e dá um abraço a Ingrid, que quase cai desequilibrada, porque nem teve
tempo de colocar os sacos do supermercado no chão. Entretanto, aparece Claudia,
a mais nova. Dispo-me do blusão, calço umas pantufas e pego-a ao colo. Vamos
para a sala. Não temos lareira, mas o aquecimento central e as luzes dos
candelabros, a meia-luz, e cor âmbar, tranquilizam-me, como se sentisse
centelhas imaginárias de uma quadra natalícia. A luz do céu azul que entra
pelas janelas também aquece. Vejo que está tudo uma grande confusão! Nem o
castelo de Hans, já erecto, altivo, impõe respeito, mesmo, mesmo no meio da
sala! Como podia? Elisa, uma das minhas noras, diz-me que não sabe onde, mas os
cachopos descobriram uma fotografia do avô, muito novo, ainda muito novo, não
sabe ela onde? De facto, não tenho fotografias espalhadas pela casa, pelo menos
minhas. Também não sei. Os malandros devem ter vasculhado as
gavetas. Ai os malandros! Sento-me no sofá e Hans vem sentar-se ao meu colo.
Mostra-me uma fotografia e pergunta-me se sou eu? Olho bem para a fotografia, a
preto e branco, e, sim, sou eu. Mas era muito novo. Deve ter sido mais ou menos
na altura em que conheci Ingrid. Peço a Hans para saltar, para eu ir buscar
mais fotografias. Ao levantar-me, lembro-me de perguntar:
–“Mas onde arranjaste tu
essa fotografia?”
–“Estava no
sofá.”
–“No sofá? – Mas
só podia estar no sofá se alguém mexeu na gaveta. –“Alguém andou a
mexer nas gavetas?” – Mas ninguém respondeu.
Abro a gaveta do móvel
da sala e, claro, está desarrumada, Hans, o malandro? Tiro os álbuns de
fotografias e sento-me novamente no sofá, puxando Claudia para o meu colo.
Chamo, Hans, Derek, Maike e Elisa e Eva, as minhas duas noras. Desfilo pelos
álbuns de fotografias. Fotografias desde a minha infância, até aos meus filhos,
mostrando os meus tempos de estudante e de militar, de antigas namoradas e,
claro, de Ingrid. Onde está ela? Deve estar na cozinha a arrumar as compras do
supermercado. Maike, de quatro anos, olhos azuis profundos e um louro pueril,
diz-me, com alguma surpresa dela, que eu era magro!
–“Já foste magro avô?”
–“Sim, já fui!”, já fui
magro, já fui jovem e um dia o meu cabelo já foi ouro em vez de prata. E
Ingrid…
–“A avó era muito
bonita!”, continua Maike.
Sim como era bela,
repito dentro de mim, como me lembro! Conto algumas histórias aos miúdos,
principalmente das primeiras fotografias de quando comecei a namorar com
Ingrid.
–“Achavas a avó bonita
avô?”
–“Sim, a tua avó era
muito bonita!”
–“E ainda achas a avó
bonita?”
Esta pergunta retumba em
mim, como um grito ecoando pelos vales das montanhas. Como posso responder eu a
esta pergunta, sendo verdadeiramente honesto? Sim, ainda acho Ingrid muito
bonita, mas claro, não a mesma beleza que me cativou quando a conheci. Agora,
agora a beleza é diferente. Mas eu sei que Maike não me pergunta por esta
beleza diferente que, só depois do tempo, se pode conhecer.
– “Sim, cada vez acho a
tua avó mais bonita.”
Que mais posso eu
responder, a uma criança, que, que ainda só conhece a beleza perecível do
rosto? Como lhe posso explicar, que não estou a falar da mesma beleza que ela
me questiona? Até que ouço:
–“Eu também acho a avó
muito bonita”, diz Maike, num sorriso enorme!
Continuamos entre
histórias. Alguns minutos. As minhas noras vão pegando e despegando em
fotografias. E, entre elas, de risos prazenteiros, lá vão comparando os seus
maridos, ou seja, os meus filhos, a mim e a Ingrid, quando mais novos. O nariz é meu, as orelhas são dela, os olhos, as mãos, os olhos, o
cabelo, os olhos, o queixo, os olhos, o tom de pele, a pele, o rosto, o rosto……
Entretanto aparece
Ingrid no corredor, e pede-me ajuda na cozinha. Elisa e Eva prontificam-se, mas
nós recusamos, dizemos a elas para ficarem com os miúdos. Onde estão os meus
filhos? Devem ter saído. Digo a Ingrid que ainda vou passar pela casa-de-banho.
Caminho pelo corredor e retumba, “E ainda achas a avó bonita?”, “E ainda achas
a avó bonita?”, “E ainda achas a avó bonita?”… e eu? E a minha beleza efémera?,
já fui magro, já fui jovem e um dia o meu cabelo já foi ouro em vez de prata…..
Entro na casa-de-banho e não evito, não evito. Olho-me ao espelho. Entre mim e
o espelho o tempo pára. A vida pára. Porque de um lado e do outro somos iguais,
somos o mesmo, somos o mesmo rosto. E. E é então que me vem à cabeça, a ideia
da sorte, da nossa sorte:
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