segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A Caixa

É um fim de tarde pontuado pela languidez de um sol fugidio. Sobre a mesa da sala uma pequena caixa de madeira. Percorrendo a sala de uma ponta à outra, os seus olhos encontram demasiadas vezes a caixa. Num ímpeto, abre as janelas e portadas, e a brancura das paredes interiores pinta-se de cor hibisco paixão.
Ela.
Transmuta-se de um estado letárgico sentindo agora a leve circulação de uma electricidade estática rejuvenescente. Seduzida, agora, desloca-se até ao canto da sala onde um gira-discos está adormecido. Ela desperta-o, e na sala os forasteiros raios apaixonados vibram agora ao som de uma guitarra flamenca, transformando o ambiente numa onda de mar de flores de hibisco. Ela. Deita-se no sofá e adormece.
Sobrepondo-se aos sons da guitarra, um telefonema desperta-a. Do outro lado uma voz rouca.
- Sim, combinado - respondeu ela.
Furtada ao seu torpor volta a mirar a caixa. Abre-a, e uma lágrima pende agora sobre os tons lívidos da sua face, e fecha-a. Em passos curtos vai até ao quarto, e do roupeiro escolhe um vestido simples de cor púrpura. Veste-se. Volta à sala. Pega na caixa, coloca-a na mala e sai.
Caminha agora por ruas estreitas da pequena vila, envolvida pelo ambiente morno e acolhedor de um fim de tarde de verão. Mas os seus olhos seguem cabisbaixos e molhados, ignorando a fotografia dos lugares timidamente encantadores. Sobre o seu ombro direito mantém alçada a mala, que segura com ambas as mãos, sentindo por vezes o balançar da caixa de madeira.
Em poucos minutos depara-se à porta de um restaurante. Entra. Um empregado apresenta as suas saudações, ela agradece, sorri, e diz que precisa de nada. O empregado afasta-se. Ela olha em redor e, ao fundo numa mesa discreta, avista um homem de tez morena, de compleição forte e cabelo grisalho penteado para trás. O homem fala com um outro sentado à sua frente. Ela aproxima-se, e com um gesto de cabeça o homem de tez morena manda o outro levantar-se e afastar-se. Ela senta-se e diz nada. O homem de tez morena cumprimenta-a. Ela diz nada e da mala retira a caixa de madeira colocando-a sobre a mesa. O homem de tez morena faz um sinal de cabeça ao outro homem, que há bocado despachara mas que se mantivera perto. Esse outro aproxima-se.
- Com licença – dirigindo-se a ela, na sua voz rouca, pega na caixa e desaparece por instantes.
O homem de tez morena, pergunta, a ela, se deseja beber algo. Ela diz nada, e ele avisa-a que perante a espera o melhor seria distrair-se com algo. Ela diz nada, e ele faz um sinal ao empregado. O empregado aproxima-se e ele pede uma água para a senhora. Rodando o pescoço para um dos lados, semicerrando os olhos, ela emite um pequeno suspiro, e diz nada. Sob o silêncio comungam um momento indesejável. Entretanto o homem de voz rouca regressa e coloca a caixa de madeira sobre a mesa, à frente do homem de tez morena. Este abre a caixa, os seus olhos revestem-se de um sorriso irónico, e fecha a caixa. Com a mão esquerda empurra a caixa até ela, que agora treme nervosamente. Indecisa, se abre a caixa primeiro ou se a coloca imediatamente na mala, num movimento brusco agarra a caixa, levanta-se, coloca a caixa dentro da mala, e num andar trémulo e inseguro, como alguém que se desloca num barco que ondula no mar, sai.
De regresso, a guitarra flamenca continua a preencher o ar, agora com uma cor hibisco paixão menos expansiva mas suave. Ela senta-se e por momentos respira fundo, bem fundo, extorquindo o seu desconforto. Recomposta, retira a caixa da mala. Abre-a, fixa-a, baixa a cabeça, fecha os olhos, limpa as lágrimas, e deixa-se adormecer no sofá sobre a agridoce vibração de uma guitarra flamenca e sobre a perfídia iluminação de um crepúsculo de tons hibisco.

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