Caminhava
pelas ruas da minha cidade sentindo o frio dos dias de Natal.
Deambulava solto e. Vi aquela menina que me fez pensar pensar. Aquela
menina: pequenina, talvez um, dois anos, de cabelo negro,
bandelete, uma franja sobre a sua pele amarelada, um pouco rosada,
talvez do frio. Os meus olhos. Deslizaram pelas linhas do seu rosto,
redondo, balançado sobre desequilibrados passos curtos,
descompassados. Naquele momento. Qualquer coisa dentro de mim. O seu
cabelo. Liso, brilhante, encurvando-se sobre as feições do rosto,
até aos seus pequenos ombros. Os seus olhos. Bonitos, grandes, de
pálpebras semi-cerradas. Olhos em bico: olhos de uma menina chinesa.
Dentro dos olhos. Qualquer coisa. A crescer a crescer. Foi o calor da
sua ternura que me preencheu e deixei de sentir o frio. Seguia de mão
dada com a avó, que, talvez por isso, talvez pela minha figura de
João-Espantado, talvez João-Espantalho, expunha nos olhos um brilho
orgulhosamente feliz. Foi aquela menina que. Me fez pensar pensar:
terá um irmaozinho, uma irmazinha, porque, lembrei-me, aos chineses,
somente é permitido ter um filho (há execpções). Será que,
os que emigram, passam a ignorá-lo? Não sei. Aquela menina, a sua
imagem, os seus passos, em mim. Em mim. Cá dentro. E. Os chineses
não podem ter filhos, mas nós podemos. Podemos, mas não temos. E.
Todas as desculpas, ou motivos, que já ouvi de muitas pessoas, para
não terem, ou ainda não terem filhos. Nesse momento, somos grandes,
tão grandes, do mesmo tamanho do altruísmo por não os termos
enquanto não lhes podermos dar as tão desejadas boas
condições para crescerem felizes. Sempre duvidei destas afirmações,
que, como disse, de tão altruístas, me fazem desconfiar de um
ligeira falsa humildade, modéstia, parcimónia. Não me interpretem
mal, porque, não é por não acreditar no que dizem, porque
acredito, mas é porque sempre as achei incompletas, inacabadas,
porventura, somente ignorantes. Por momentos, confundo-me se todos
teremos crescido com tablets e
portáteis, se teremos crescido com roupas de marca, se teremos
crescido com pacotes de televisão paga, se teremos crescido com?
Talvez as minhas memórias me enganem, e não tenhamos crescido com
brinquedos que muitas vezes tínhamos de inventar, jogos de rua, as
roupas do nosso irmão ou irmã mais velhos, dois canais de
televisão, e que são independentes de qualquer condição? Talvez
as minhas memórias me enganem, mas devemos ter sido todos tão
infelizes, extremamente infelizes, quando éramos crianças, que,
hoje, temos medo de os nossos filhos também o serem? Ou, talvez,
esteja tão enganado, e tenhamos sido tão felizes, que, hoje, ao
vermos que não podemos dar o mundo como os nossos pais nos deram,
não queiramos dar aos nossos filhos o mundo em que hoje vivemos?
Talvez, só, seja eu que esteja verdadeiramente enganado. Mas. Se nós
fomos felizes na nossa infância, com muito menos do que temos hoje,
então, porque é que havemos de pensar que os nossos filhos serão
infelizes com mais ainda? Já não se lembram o que nos fazia feliz
quando fomos crianças? Crianças. Aquela menina,
o
corpinho dentro de uma camisola de lã, branca, com umas figurinhas
vermelhas, e calcinhas de ganga, a esconderem a persistência dos
seus passos, em crescer em crescer. Um blusão azul-escuro, que. Eu.
Compungido. Comovido. Às costas, uma mala larga, quase maior do que
ela, e que lhe conferiu a ternura. Essa ternura que caminhava sobre
passos descompassados como os nossos passos, que, antes da crise, nos
levavam a comprar um carro, talvez topo de gama, uma casa, talvez no
melhor lugar, roupas roupas roupas, viagens de sonho, porque ainda
somos jovens e precisamos de viver! Precisamos de viver tudo antes de
termos os nossos filhos porque, depois, acaba, parece que vai acabar.
Mas o que acaba? Já perguntámos a algum pai, mãe, o que acaba?
Talvez seja melhor perguntarmos, o que começou?
Antes
da crise já tínhamos salários baixos e não chegava. Não poupámos
para. Pelo contrário, aproveitámos a vida. Agora, temos salários
ainda mais baixos e, afinal, sempre parece que chega. Porque acabámos
por cancelar o ginásio, ou, por comprar um telemóvel mais barato.
Mas agora, agora que ganhamos mesmo menos, agora é que já não
conseguimos poupar. Vamos continuar a dizer que é porque não
conseguimos poupar, que é porque ainda não temos a nossa vida
encaminhada, agora que sabemos que tudo pode mudar, de um dia para
outro? Se assim for, seremos uma geração sem filhos e. Eu. Às
vezes. Penso: ainda bem que há umas crises: são como doenças,
abrem-nos os olhos ao essencial.
Sempre
tivemos muitas desculpas. Não temos emprego ou se temos não é
estável. Ainda não temos casa, ou estamos a pagar a casa.
Porque temos de ter casa, a nossa casa, não podemos viver sem a
nossa nossa casa. Não, não podemos esperar como os nossos pais
esperaram para ter a deles. Os nossos pais fizeram a sua escolha:
primeiro os filhos, depois a casa, depois o carro. Nós. Nós fizemos
a nossa escolha: primeiro o carro, depois a casa e, depois, talvez,
um filho. Queremos viver tanto que não viveremos para além de nós
mesmos. Não nos podemos esquecer, que, só poderemos viver para além
de nós mesmos se, alguém, depois de nós, se lembrar de nós.
E
eu que voltei para um lugar que não é o meu, e onde vejo pessoas
tão diferentes de nós, como pessoas com linhas parecidas com as
linhas daquela menina pequena que eu vi. Não hesitei. Perguntei se
tinha tido férias em Dezembro, se tinha ido a casa, ou se iria
quando fosse o ano novo Chinês, apesar de nem saber bem o que estava
a dizer. Disse-me que não, que não tinha ido, mas que também não
iria, porque, lá, na China, na terra onde só podem ter um filho,
não tem família. Tem os pais, ainda tem os pais, só os pais. Não
tem irmãos, nem tios, nem tias (apesar de a lei de filho único
datar de 1978). E disse-me que não iria lá, que não precisa, os
pais virão cá, são só dois, e estão lá. Sozinhos,
sem irmãos nem irmãs, sem qualquer outro filho,
porque já não podiam ter outro filho. Lá, não tem mais ninguém
para visitar. Nesse dia naveguei pela elegante recordação
de uma menina chinesa, que, me fez pensar pensar em qualquer coisa
realmente importante: os
chineses não escolheram, mas nós fizemos a nossa escolha: seremos os novos filhos da China.
Um
dia terás um filho, só um, ou tentarás. Todos temos amigos que já
precisaram de tratamentos de fertilidade, talvez por já ser tarde,
talvez por outra coisa qualquer? Somos jovens e
desafiamos tudo. Somos jovens e ignorantes. É por isso que digo
que são frases inacabadas, incompletas, frases ignorantes. Porque
terás um filho aos trinta e cinco, talvez já aos quarenta e. Quando
quiseres ser avô, avó, terás setenta, talvez até oitenta, mas o
teu filho ainda não quererá ter filhos. E, se tiver, apenas
sentirás por breves instantes da tua vida um rasgo de luz de toda a
felicidade que os teus pais terão quando forem avós, se forem. Nós
escolhemos que o nosso neto (não os nossos) um dia não terá
família. E o Natal. Será um Natal mais pequeno. Os
irmãos e irmãs, os primos e primas, os tios e tias, estão
ameaçados. Como tantas outras espécies estão. Pelo.
Homem. Talvez,
quando fores velho, percebas o que é ser jovem e tomar decisões
ignorantes, e queiras completar algumas frases da tua juventude.
Porque, quando
formos mais velhos, já não teremos força para correr, para viver
tudo como agora vivemos.
Talvez, então, queiramos ver os nossos
filhos e os nossos netos a fazer-nos companhia, a brincar, e sabermos
que cá, fica algo de nós, porque não nos podemos esquecer, que, só
poderemos viver para além de nós mesmos se, alguém. Ou,
talvez, eu seja apenas um jovem tão ignorante e pretensioso, que, um
dia, ao reler este texto sinta uma imensa vergonha do meu pedantismo.
Um
dia ao caminhares pela rua, entre o espreitar de duas montras que te
cobiçam (queres ter aquela novidade lá na sala de casa), quiçá,
repares num menino pequenino de linhas diferentes das tuas, que te
desperte. Serão aquelas linhas diferentes que te farão pensar
pensar. Qualquer coisa. Talvez siga de mão dada com o avô, que, porvenura, em virtude da tua figura de *****-Espantad*, talvez, *****-Espantalh*,
traga nos olhos um brilho orgulhosamente feliz. Talvez nesse dia.
Talvez nesse dia saibas que és jovem e que, quando somos jovens,
ainda vivemos no reino da ilusão, porque das coisas mais difíceis,
é conseguirmos distinguir a ilusão de sermos jovens e vivermos
tudo, com a realidade de que um dia seremos velhos e só nos resta a
nossa família.