sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Quase quase quase... Um Conto de Natal - PARTE IV








PARTE IV – O AZAR

–“O nosso azar é vivermos todos os dias”.
Assalta-me uma confusão de pensamentos. Prendo-me. Olho-me ao espelho. Não me desprendo de mim. E tomo atenção ao meu rosto. Procuro as rugas que não tinha ontem, mas que tenho hoje. Procuro o cabelo que ontem, ainda brilhava, mas que hoje é baço. Procuro no espelho os sinais diferentes de ontem e encontro-me nos meus olhos. Parecem-me a única parte do rosto que não envelheceu. Viro os olhos e percorro-me no reflexo do espelho. Levanto as mãos ao nível do rosto e acaricio a minha pele. Não sinto a lisura, a suavidade de ontem. De ontem não. De um dia, atrás, muito atrás que eu não me lembro. Toco no cabelo e não sinto, já não sinto a sua vitalidade. Apanho o cabelo. Viro-me de perfil, para um lado, depois para o outro. O que terá Franz respondido a Maike quando ela lhe perguntou se me ainda achava bonita? Já não sou bonita, eu sei. Como posso ser? Sou velha, sim já sou velha. Não é isso que me abala. Agora, sei que, olhar-me ao espelho é uma atitude defectível. O espelho é como alguém insidioso, traiçoeiro, que todos os dias nos engana. Vemo-nos todos os dias ao espelho, e, assim, todos os dias, não notamos as diferenças para com o dia de ontem. Iludimo-nos, porque não constatamos que mudamos. Quem se vê todos os dias não pode ver as diferenças. É o nosso azar, porque um dia, um dia quando olharmos bem, já não somos jovens e bonitos e, e depois atemorizamo-nos, mas já perdemos tudo. O corpo está sempre à frente da mente. Em todo o tempo para trás, vivemos enganados, diferentes da nossa condição. Se, todos os dias, o espelho não me ludibriasse, talvez, talvez eu olhasse mais para dentro de mim em vez de para fora. E, assim, talvez, vivesse mais perto da minha condição. Vivemos iludidos de um envelhecimento que não nos escapa, feroz, inexorável. O azar da nossa vida é vivermos todos os dias.
Desprendo-me do espelho. Tenho lágrimas a escorrer-me pelo rosto. Limpo-as. Não me podem ver assim. Volto para a cozinha, mas ainda os ouço a falar na sala. Não posso ouvi-los. Estou sensível. Vou chamar o Franz para me ajudar na cozinha, talvez assim parem.
–“Franz?”, e chamo-o escondendo-me na esquina do corredor.
Peço ajuda na cozinha. Recusamos a ajuda das noras. Ele vem, eu fujo para a cozinha, já me arrependi, ainda devo ter estas lágrimas no rosto.
–“Vou só passar, primeiro, pela casa-de-banho. Já te ajudo.”
–“Está bem”, ainda bem, ainda bem, ainda bem, que alívio, que sorte.
Posso recompor-me. Franz demora algum tempo a voltar. Elisa e Eva gritam-me da sala que vão lá para fora brincar com os miúdos. Perguntam se preciso de ajuda. Não, digo que não, claro. Ouço os sons que vem junto à porta, são sons de quem veste casacos, blusões, e ouço Hans:
–“Vou buscar a moto que o avô me deu!”
–“Depois não te esqueças das luvas”, diz Elisa.
E ouço a porta a bater. Há uns dois ou três anos, Franz, comprou um escorrega para os cachopos, que, eles, gostam muito. Nós também. Ainda não limpámos a neve de todo o pátio mas não faz mal, com a neve os miúdos e os meus filhos construíram um boneco de neve. Já perdeu um braço. Maike, tenta consertá-lo, mas não consegue. E foi para o escorrega. Ao olhar para os cachopos penso alto, “O azar da vida é vivermos todos os dias”, e uma sombra inócua debaixo do umbral da cozinha…
–“O que disseste avó?”, é Hans.
Traz ao colo um comando e a prenda do avô. A minha voz treme:
–“Nada, filho, nada, a avó não disse nada. Está a pensar sozinha”
Hans desaparece e volto-o a encontrar pela janela, lá fora. E:
–“Então, de que ajudas é que precisas?”.
Atrapalho-me……nem me lembrei de fingir que estou a fazer qualquer coisa. Será que ele notou?
–“Nada…. Já não é nada. Já fiz”.
Continuo a olhar pela janela e digo:
–“Vai brincar com os netos.”
Tento esconder o perfil onde sinto uma lágrima a escorrer-me. Espero que ele não tenha visto. Foi para a sala. Ai, esqueci-me de lhe dizer que foram lá para fora.
–“Sabes onde estão eles, Ingrid?”
–“Desculpa, estão lá fora”.
E continuei a olhar pela janela. Gosto de ver os meus netos a brincar.

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