sábado, 25 de fevereiro de 2012

A imortalidade

Há qualquer coisa em Kundera. Há qualquer coisa que me fascina e que excede o meu discernimento. Não é fácil explicar a escrita de Kundera, assim como, não é fácil lê-lo. No entanto terminei. Terminei, “A imortalidade” (Edições Dom Quixote). Ainda hoje sinto barreiras, não só a lê-lo (é preciso atingir um patamar na vida e, uma certa percepção para entendê-lo) mas também a expô-lo, pelo que o mais simples que sou capaz é qualquer coisa como:

“Enquanto todos os outros concluem, apenas a partir de um grande e significativo gesto, visível por todos, conclusões impressionantes, ele, Kundera, conclui a partir do mais insignificante e banal dos gestos, a mais impressionante das conclusões”.

Este foi o quarto romance que li de Kundera, e de longe o mais complicado. Porém o mais sui generis, e o que mais me surpreendeu, se é que ainda posso surpreender-me pela sua capacidade de surpreender. O final é absolutamente memorável, e auto-explicativo de todo o romance. Senti-me como se estivesse sentado numa sala de teatro a ver o encenador a celebrar o êxito, já para além do fim de toda a representação. Bati palmas! É verdade, bati palmas!

Mas o que mais me impressiona na sua escrita é a magnitude do inconsciente com que dota as suas personagens. Quero dizer que, quando uma personagem elabora uma acção, um gesto, qualquer acto, Kundera, não enfatiza a razão consciente com que essa personagem elaborou a acção, mas a razão inconsciente que a induziu, a tal magnitude, profundidade, ou seja, a
verdadeira essência na realização do gesto. Considero, assim, Kundera, como indiscritível, nem romancista, nem filósofo. A ficção de Kundera evidencia-se por vezes como mais real que a nossa própria realidade porque é o seu romance que nos torna conscientes da nossa inconsciência, tornando-nos cientes das nossas ilusões e do engano da aparente verdade. As conclusões de Kundera não são filosofia porque são objectivas, pragmáticas, e acima de tudo (quase sempre) verdadeiras e explicativas da realidade que nos transcende conscientemente, negando espaço a ulteriores divagações e contra-argumentações.

Só consigo transmitir um pouco do meu ponto de vista transcrevendo-vos o primeiro capítulo do livro. Sublinhei a negrito, aquilo que defini como,

“…….Kundera, conclui a partir do mais insignificante e banal dos gestos, a mais impressionante das conclusões”

e

“...... quando uma personagem elabora uma acção, um gesto, qualquer acto, Kundera, não enfatiza a razão consciente com que essa personagem elaborou a acção, mas a razão inconsciente que a induziu, a tal magnitude, profundeza, ou seja, a verdadeira essência na realização do gesto.”


em "A imortalidade" (Edições Dom Quixote):

“A senhora teria talvez sessenta, sessenta e cinco anos. Vi-a da minha cadeira de repouso, reclinado diante da piscina de um clube de ginástica no último andar de um prédio moderno, de onde, através das grandes janelas envidraçadas, se vê Paris inteiro. Estava á espera do professor Avenarius, com quem de vez em quando me encontro aqui para discutirmos diversos assuntos. Mas o professor Avenarius não havia maneira de chegar e eu ia olhando para a senhora; sozinha na piscina, mergulhada até à cintura, ela fitava o jovem professor de natação que, em fato de treino, de pé acima dela, lhe dava a sua aula. Enquanto ouvia as instruções dele, a senhora apoiou-se ao bordo da piscina para inspirar e expirar fundo. Fê-lo com seriedade, com zelo, e era como se da profundidade das águas subisse a voz de uma velha locomotiva a vapor (essa voz idílica hoje esquecida, da qual não poderei dar uma ideia aos que não a conheceram a não ser comparando-a com a respiração de uma senhora idosa que inspira e expira apoiada ao bordo de uma piscina). Olhava-a, fascinado. A pungente comicidade dela cativava-me ( e essa comicidade era notada também pelo professor de natação, uma vez que as comissuras dos seus lábios me pareciam estremecer a todo o instante), mas ouve alguém que me dirigiu a palavra, desviando a minha atenção. Pouco depois, quando quis voltar a observá-la, a aula terminara. A senhora afastava-se em fato de banho ao longo da piscina e quando se encontrava a quatro ou cinco metros do professor de natação, virou a cabeça na direcção dele, sorriu-lhe, e fez-lhe um sinal com a mão. Fiquei com o coração apertado. Aquele sorriso, aquele gesto, eram de uma mulher de vinte anos! A mão como que voara com uma ligeireza encantadora. Como se, por brincadeira, ela atirasse ao amante um balão de muitas cores. O sorriso e o gesto eram cheiros de sedução, ao passo que o rosto e o corpo já nada de sedutor tinham. Era a sedução de um gesto afogado na não-sedução do corpo. Mas a mulher, embora devesse saber que deixara de ser bela, esquecera-se nesse instante. Numa certa parte de nós mesmos, todos vivemos para além do tempo. Talvez só tomemos consciência da nossa idade em certos momentos excepcionais, permanecendo sem idade a maior parte do tempo. Em todo o caso, no momento em que se virou, sorriu e fez um sinal com a mão ao professor de natação (que, incapaz de se conter por mais tempo, rebentou a rir), a senhora nada sabia da sua idade. Graças a esse gesto, pelo espaço de um segundo, uma essência da sedução dela, não dependente do tempo, revelou-se e deslumbrou-me. Sentia-me estranhamente emocionado. E a palavra Agnès surgiu no meu espirito. Nunca conheci ninguém com esse nome.”

E foi assim que o tempo ficou a ecoar na minha cabeça. Dois dias depois fui correr para o jardim da Quinta das Conchas e…. não deixei de pensar no tempo.

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